O antigo Clube de Leitura em Voz Alta deu lugar ao Coro de Leitura em Voz Alta. Tem normalmente um periodicidade quinzenal e acontece na Biblioteca de Alcochete.

Os objectivos continuam a ser os mesmos; promover o prazer da leitura partilhada; a forma passou a ser outra.

28 dezembro - Amor


A Cristina iniciou a sessão com uma versão silenciosa (baseada em LGP) desta delícia... a tradução simultânea ficou a cargo da Isabel (para quem quiser aprender mais um pouco pode ir até aqui)

Amor é fogo que arde sem se ver (Luis Vaz de Camões)


Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
O Fernando trouxe no seu livro uma carta escrita por outro... Pessoa

"Terrível bebé:


Gosto das suas cartas, que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também . E é bombom, e é vespa e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o bebé deve escrever-me sempre, mesmo que não escreva, que é sempre, e eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque que havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda lhe telefono hoje, e gostava de lhe dar um beijinho na boca, com exactidão e gulodice e comer-lhe a boca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e encostar-me ao seu ombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto final até recomeçar e porque é que a Ofelinha gosta de um meliante e de um cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fosse uma boneca minha, e eu fazia como uma criança, despia-a e o papel acaba aqui mesmo, e isto parece impossível ser escrito por um ente humano mas é escrito por mim.

Fernando"
E porque tão contrário a si é o Amor, a Lena R. foi buscar dois sonetos da bipolar Florbela Espanca.

[Se tu viesses ver-me...]

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

[Tarde Demais]


Quando chegaste enfim, para te ver
Abriu-se a noite em mágico luar;
E pra o som de teus passos conhecer
Pôs-se o silêncio, em volta, a escutar...

Chegaste enfim! Milagre de endoidar!
Viu-se nessa hora o que não pode ser:
Em plena noite, a noite iluminar;
E as pedras do caminho florescer!

Beijando a areia d'oiro dos desertos
Procura-te em vão! Braços abertos,
Pés nus, olhos a rir, a boca em flor!

E há cem anos que eu fui nova e linda!...
E a minha boca morta grita ainda:
"Por que chegaste tarde, Ó meu Amor?!..."
A Teresa leu um excerto de "A Bela Acordada"

A Isabel voltou a Fernando Pessoa (perdão, a Álvaro de Campos) e às suas cartas de amor.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, 21/10/1935
E porque nesta sessão a Isabel esteve na berlinda foi ainda dar uma mãozinha... (ou melhor... emprestar a voz) ao João. A versão cantada pelo Zeca Afonso está aqui.


[MOTE ALHEIO]
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

[VOLTAS SUAS]
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,

De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;

Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

(Luís de Camões)

A Paula foi aos "Contos de Amor" de Herman Hesse

O Daniel brindou-nos com uma carinhosa canção de amor esquimó (Daniel: podes copiar o texto para aqui? Se quiseres eu ensino-te como se faz!)

Voltámos a Luís de Camões com o Paulo:

[MOTE ALHEIO]

Se me levam águas,
nos olhos as levo.

[GLOSAS PRÓPRIAS]

Se de saudade
morrerei ou não,
meus olhos dirão
de mim a verdade.
Por eles me atrevo
alcançar as águas
que mostrem as mágoas
que nesta alma levo.

As águas que em vão
me fazem chorar,
se elas são do mar
estas d'amar são.
Por elas relevo
todas minhas mágoas;
que, se força d'águas
me leva, eu as levo.

Todas me entristecem,
todas são salgadas;
porém as choradas
doces me parecem.
Correi, doces águas,
que, se em vós m'enlevo,
não doem as mágoas
que no peito levo.

[MOTE ALHEIO]


A dor que a minh' alma sente
não na sabe toda a gente.

[VOLTAS]

Que estranho caso de amor,
que desejado tormento,
que venho a ser avarento
das dores de minha dor!

Por me não tratar pior,
se se sabe ou se se sente,
não na digo a toda a gente.

Minha dor e causa dela
de ninguém ouso fiar,
que seria aventurar
a perder-me ou a perdê-la.

E pois só com padecê-la
a minha alma está contente,
não quero que a saiba a gente.

Ande no peito escondida,
dentro n'alma sepultada;
de mim só seja chorada,
de ninguém seja sentida.

Ou me mate ou me dê vida,
ou viva triste ou contente,
não ma saiba toda a gente.
A Virgínia homenageou o Amor à Ciência e ao Conhecimento: de António Gedeão, "Poema Para Galileu" (aqui dito pelo próprio autor)


Justus Sustermans: Picture of Portrait of Galileo - Uffizi Gallery, Florence
Galileu Galilei por Justus Sustermans (Galleria Uffizi, Florença, Itália)

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce
sobre um modesto cabeção de pano.
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício.
Disse Galeria dos Ofícios.)
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florenca.
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria
Eu sei... Eu sei...
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia.
Ai que saudade, Galileo Galilei!

Olha. Sabes? Lá em Florença
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário.
Palavra de honra que está!
As voltas que o mundo dá!
Se calhar até há gente que pensa
que entraste no calendário.






Eu queria agradecer-te, Galileo,
a inteligência as coisas que me deste.
Eu,
e quantos milhões de homens como eu
a quem tu esclareceste,
ia jurar -- que disparate, Galileo!
-- e jurava a pés juntos e apostava a cabeca
sem a menor hesitação --
que os corpos caem tanto mais depressa
quanto mais pesados são.
Pois não é evidente, Galileo?
Quem acredita que um penedo caia
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia?
Esta era a inteligência que Deus nos deu.

Estava agora a lembrar-me, Galileo,
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo
e tinhas à tua frente
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo
a olharem-te severamente.
Estavam todos a ralhar contigo,
que parecia impossível que um homem da tua idade
e da tua condição,
se estivesse tornando num perigo
para a Humanidade
e para a Civilizacão.

Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios,
e percorrias, cheio de piedade,
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.
Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas,
desceram lá das suas alturas
e poisaram, como aves aturdidas -- parece que estou a vê-las --,
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual
conforme suas eminências desejavam,
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal
e que os astros bailavam e entoavam
à meia-noite louvores à harmonia universal.
E juraste que nunca mais repetirias
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma,
aquelas abomináveis heresias
que ensinavas e escrevias
para eterna perdição da tua alma.

Ai, Galileo!
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo,
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços,
andavam a correr e a rolar pelos espaços
à razão de trinta quilómetros por segundo.
Tu é que sabias, Galileo Galilei.
Por isso eram teus olhos misericordiosos,
por isso era teu coração cheio de piedade,
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos
a quem Deus dispensou de buscar a verdade.

Por isso estoicamente, mansamente,
resististe a todas as torturas,
a todas as angústias, a todos os contratempos,
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas,
foram caindo,
caindo,
caindo,
caindo,
caindo sempre,
e sempre,
ininterruptamente,
na razão directa dos quadrados dos tempos.


O Augusto leu um texto de sua autoria (que só depois de nos ser enviado poderá ser para aqui transcrito)

O António depois de uma sentida declaração, leu de Jacques Prévert, "Alicante"

Une orange sur la table
Ta robe sur le tapis
Et toi dans mon lit
Doux présent du présent
Fraîcheur de la nuit
Chaleur de ma vie
[Uma laranja sobre a mesa
O teu vestido no tapete
E tu no meu leito
Doce presente do presente
Frescura da noite
Calor da minha vida]
A Helena leu um excerto de "Combateremos a Sombra" de Lídia Jorge.

Voltamos a Luís de Camões, uma das paixões da Mariana (aqui de novo por José Afonso):

Endechas a Bárbara escrava


Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.

Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Para ser senhora
De quem é cativa.

Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.

Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.

Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.
 A Cecília também trouxe um Amor Diferente: o incondicional amor dos animais aos seus donos, com vários exemplos de animais heróis.

Se um Cão fosse seu Professor Você aprenderia coisas assim:

Quando alguém que você ama chega em casa, corra ao seu encontro.
Nunca perca uma oportunidade de ir passear de carro. Permita-se experimentar o ar fresco do vento no seu rosto.
Mostre aos outros que estão invadindo o seu território.
Tire uma sonequinha no meio do dia e espreguice antes de levantar.
Corra, pule e brinque todos os dias.
Tente se dar bem com o próximo e deixe as pessoas te tocarem.
Não morda quando um simples rosnado resolve a situação.
Em dias quentes, pare e role na grama, beba bastantes líquidos e deite debaixo da sombra de uma árvore.
Quando você estiver feliz, dance e balance todo o seu corpo.
Não importa quantas vezes o outro te magoa, não se sinta culpado… volte e faça as pazes novamente.
Aproveite o prazer de uma longa caminhada.
Se alimente com gosto e entusiasmo.
Coma só o suficiente.
Seja leal.
Nunca pretenda ser o que você não é.
Se você quer se deitar embaixo da terra, cave fundo até conseguir.
E o MAIS importante de tudo… Quando alguém estiver nervoso ou triste, fique em silêncio, fique por perto e mostre que você está ali para confortar.

(Não consegui encontrar a fonte original nem o autor)
 A Alexandra J. conseguiu finalmente encontrar a explicação do Amor:

Como explicar o AMOR


Conta-se que uma vez, num lugar longínquo da Terra se reuniram os sentimentos, os defeitos e as qualidades dos homens.
Depois do ABORRECIMENTO bocejar e reclamar pela terceira vez, a LOUCURA, sempre tão louca, propôs-lhe:

- Vamos brincar às escondidas?

A INTRIGA levantou a sobrancelha, intrigada, e a CURIOSIDADE, sem poder conter-se, perguntou: «- Escondidas? O que é isso? Como se joga? Podemos jogar todos?»

- É um jogo - explicou a LOUCURA - em que eu fecho os olhos e começo a contar de um a um milhão enquanto vocês se escondem.Quando eu acabar de contar, vou à vossa procura e o primeiro que eu encontrar ocupará meu lugar para continuar o jogo.

O ENTUSIASMO dançou, e a EUFORIA foi atrás dele. A ALEGRIA deu tantos saltos que acabou por convencer a DÚVIDA e até mesmo a APATIA, que nunca se interessava por nada. Mas nem todos quiseram participar: a VERDADE preferiu não se esconder: para quê, se no fim todos a encontravam? A SOBERBA opinou que era um jogo muito tonto (no fundo, o que a incomodava era que a ideia não tivesse sido dela) e a COVARDIA preferiu não se arriscar.

- Um, dois, três, quatro... - começou a contar a LOUCURA.

A primeira a esconder-se foi a PRESSA, que, como sempre, caiu atrás da primeira pedra do caminho.

A FÉ subiu ao céu e a INVEJA escondeu-se atrás da sombra do TRIUNFO, que com seu próprio esforço, tinha conseguido subir até à copa da árvore mais alta.

A GENEROSIDADE quase não se conseguia esconder, pois cada local que encontrava lhe parecia bom para algum de seus amigos - se era um lago cristalino, ideal para a BELEZA; se era a copa de uma árvore, perfeito para a TIMIDEZ; se era o voo de uma borboleta, o melhor para a VOLÚPIA; se era uma rajada de vento, magnífico para a LIBERDADE. E assim, acabou por se esconder num raio de sol. O EGOÍSMO, pelo contrário, encontrou um local muito bom desde o início. Ventilado, cómodo, mas só para ele. A MENTIRA escondeu-se no fundo do oceano (mentira, na realidade, escondeu-se atrás do arco-íris), e a PAIXÃO e o DESEJO no centro dos vulcões. O ESQUECIMENTO, não me recordo onde se escondeu, mas isso não é o mais importante.

Quando a LOUCURA ia no novecentos e noventa e nove mil, novecentos e noventa e nove, o AMOR ainda não havia encontrado um local para se esconder, até que encontrou um roseiral e, carinhosamente, decidiu esconder-se entre suas flores.

- Um milhão - contou a LOUCURA. E começou à procura dos outros.

A primeira a aparecer foi a PRESSA, apenas a três passos de uma pedra. Depois, escutou-se a FÉ discutindo com Deus, no céu, sobre Zoologia. Por mero acaso, encontrou a INVEJA, e claro, deduziu onde estava o TRIUNFO. Ao EGOÍSMO, não teve nem que procurá-lo: ele saiu sozinho, disparado, do seu esconderijo, que, afinal, era um ninho de vespas. De tanto caminhar, a LOUCURA sentiu sede e, ao aproximar-se de um lago, encontrou a BELEZA. À DÚVIDA foi mais fácil ainda, pois encontrou-a sentada sobre uma cerca, sem decidir de que lado se esconder. E assim foi-os descobrindo um a um.  O TALENTO entre a erva fresca; a ANGÚSTIA numa cova escura; a MENTIRA atrás do arco-íris (mentira, estava no fundo do oceano); e até o ESQUECIMENTO, que já se tinha esquecido que estava a jogar.

Apenas o AMOR não aparecia em lado nenhum!.

A LOUCURA procurou atrás de cada árvore, debaixo de cada rocha, no topo de cada montanha. Quando estava a ponto de se dar por vencida, encontrou um roseiral. Agarrou numa forquilha e começou a mexer nos ramos. No mesmo instante, ouviu-se um grande grito: os espinhos tinham ferido o AMOR nos olhos. A LOUCURA não sabia o que fazer para se desculpar: chorou, rezou, implorou, pediu perdão. Como nada disto era suficiente, teve uma ideia: seria para sempre a guia do AMOR. O AMOR aceitou.

E é assim que, desde que pela primeira vez se brincou às escondidas na Terra, o AMOR é cego e a LOUCURA anda sempre com ele.
A Alexandra F. foi buscar o "Elogio do Amor Puro" de Miguel Esteves Cardoso.

E porque esta foi a última sesão de 2010, a Cristina encerrou-a com a "Receita de Ano Novo" de Carlos Drummond de Andrade

Para você ganhar belíssimo Ano Novo

cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).

Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

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